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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

CALIGRAFIAS


Não tenho nada a escrever sobre direção teatral; não tenho aquela capacidade estética ou artística que confere ao sujeito a habilidade de antever o espetáculo a partir da leitura de um texto ou de qualquer outro ponto de partida... sou uma pessoa ligada quase obsessivamente ao trabalho do ator e por isso é dele, para ele e através dele que consigo dirigir qualquer coisa. Digo consigo porque faço o que eu posso, mas não por falta de desejo de melhorar; simplesmente porque quando iniciei a tarefa de dirigir este trabalho, além de não ter nenhuma pretensão e nenhum pré-conceito eu tinha muita consciência de seu ponto de partida: o “Luisa” era o espetáculo da Sandra. Um espetáculo nascido do desejo de uma atriz de montar um texto, uma história, uma memória, mas acima de tudo, havia o seu desejo de pôr-se a prova, testar seus limites, descobrir-se dentro de algo novo... para mim, se existia algum autor ali, eram apenas dois: Daniel Veronese, dramaturgo argentino autor do texto e Sandra, em uma jornada absolutamente pessoal de auto-descoberta e de busca de uma identidade artística. Minha tarefa então parecia clara: olhar, olhar, olhar e ouvir, ouvir, ouvir até que o quê estivesse concretizado fosse uma escrita misturada em muitas mãos, mas com a caligrafia forte da Sandra assumindo seus desejos.
Tenho procurado também assumir alguns riscos em trabalhos como esse, quando permitem: um deles foi o cenário. Imaginado, concebido e executado por Roberto, era algo que só poderia vir de sua maturidade e inteligência estética... eu, ao recebê-lo tive a empolgante tarefa de estranhá-lo, usá-lo, questioná-lo, habitá-lo e por fim agradecer infinitamente por ter confiado nele, sabendo que é a solução mais incrível, mais sintética e mais cheia de significado possível para este trabalho. Mais uma vez a ausência de pré-conceitos nos levou a lugares melhores, a mundos inusitados.
O texto de Veronese foi a última caligrafia a ser impressa nesse entrelaçamento de mãos: primeiro, antes de tudo, eu queria ver a Sandra falando o texto, mas não um falar de eu-de-co-rei-o-tex-to. Falar, falar de verdade, se ouvir, sentir com todo o corpo o peso da palavra dita e vivida. Para isso eu dizia: ignora o significado das palavras, eu quero que você fale! E todo o processo de preparação da Sandra foi então construído minuciosamente: fortalecer seu corpo, debilitado pela lesão no labrum, fortalecer sua voz, criar fluxo, criar corpo. Dançar, dançar, dançar. Cantar, cantar, cantar. E procurar através do trabalho de corpo-voz não a forma, o gesto estilizado, o personagem – procurar o fluxo-em-vida, o ator se deixando afetar pelas suas ações e transformando-as de acordo com as flutuações vividas. Vivenciar com os músculos, articulações e ossos aquilo que pode ser feito no aqui-agora de uma improvisação.
E então, cada dia eu olhei, olhei, ouvi, ouvi, tudo, cada respiração da Sandra no ensaio. Eu selecionava aquilo que tinha sido legal, ela escolhia aquilo que gostava... e então ela ia tecendo sua própria lógica, sempre a busca de uma pequena surpresa, de um momento emocionante ou sincero que pudesse me tocar, me prender, me transportar. E não foram poucas as vezes que eu me emocionei em um ensaio, me questionando como apreender estes momentos verdadeiros sem engessá-los em uma forma asfixiante.
Só depois desse corpo-voz vivo é que veio o sentido do texto: como falar cada frase e ir construindo a nossa própria compreensão através da audição e do olhar e não da leitura: o sentido do texto, sua compreensão, nasceu do corpo em movimento da atriz, que a cada dia oferecia mil possibilidades e nós escolhíamos uma ou duas, com pena de desperdiçar tanta beleza.
A precisão das palavras de Veronese foi possível a partir da concretização do fluxo da Sandra, da sua capacidade de dar vida às palavras escritas. E eu ouvia, ouvia e dizia – não! ainda está falso.... – e via a Sandra ficar com raiva de mim e tentar, tentar... até que, depois do dia que foi sim, foi sim sempre.....e eu via no corpo todo da Sandra, do dedo do pé ao fio de cabelo, do leve respirar ao canto mais alto o resultado de um trabalho conjunto e via o texto se concretizar da maneira mais fiel possível: quando você vê, o ator vivo na sua frente, te contando aquela história que um dia foi papel escrito.
As minhas contribuições foram provocações, desafios: e a Sandra aceitou e superou cada um deles, e sou grata pela sua generosidade de tentar fazer tudo tudo aquilo que eu pedi que ela fizesse, pois eu, da minha almofada de meditação ( carinhosamente denominada de “cadeira de diretor”, pude aprender muito. Mas como dissemos em uma conversa recente, este espetáculo é um início e não um fim. Este trabalho não está pronto, nunca estará. Ele é um meio de expor, explorar e amadurecer todas as potencialidades da atriz, um espetáculo de atriz, uma peça que eu espero que dure 30 anos e que a cada vez que eu assista, seja diferente.

Barbara Biscaro

Um comentário:

  1. realmente,a Barbara olhou, olhou..e não se cansou de olhar. Uma generosidade imensa. Muitos agradecimentos por ter me mostrado tantas coisas em tão pouco tempo. Pouco tempo mas intenso!
    Obrigada, Bá...e a almofadinha de meditação nunca teve uma utilidade tão "Fantárdiga".

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